domingo, 20 de fevereiro de 2011

sobre o que alivia..

"olá, um L.A de cereja."
o chinês levanta o olhar,
abre um sorriso desfalcado de uns dois dentes
estende a mão e diz: "Oiiiê... tudho bom?"


Os dias mudaram significativamente... mudaram pra melhor... mudaram os rumos... os medos...os risos...as trilhas sonoras... e o que era sua rotina não mais te situa... a saudade cede lugar a uma sensação constante de peixe fora d'água... pertencemos a algum lugar? pertencemos a alguém?

Ela subia a rua, com a cabeça cheia de devaneios, tilintar de moedas, risos honestos, homens intensos... e quando o dia era relativamente bom, passava batido pela banca de jornal, aquela bem de esquina, depois da praça...mas, quando o dia sufocava, qd o trabalho a esfolava com palavras duras, dias atormentados...ou quando tudo parecia sem ritmo ou desnecessário ela parava na banca de jornal.

Olhos de fenda... muita testa, pouco cabelo, o dono da banca era o resumo do fim do dia , era o resumo da má ópera e do alivio...
"o sr vende cigarros avulsos?"
Ele sinalizava positivamente com a cabeça.
"Me vê um, desses de cereja. Tem isqueiro?"
ele apontava o dedo com uma unha estranhamente amarela.
"Obrigada, bom serviço."

Ela subia a rua em passos lentos e tragos curtos... pensamentos dissipando feito fumaça, sol na nuca, às vezes mimosa garoa... como os dias ruins são uma constante a parada na banca tb o era... e uma relação amistosa começava... o dedo de unha familiarmente amarela entrega o isqueiro nas mãos dela... ele já balbuciava algumas palavras... tudo muito rápido, efêmero e cotidiano...

Dado dia ela pede os de cereja, e ele responde: "nô them", ela olha de esgueira, caixas e caixas deles acumuladas no canto, pensou consigo que talvez não fosse lucrativo pra ele vender daqueles avulsos e levou um maço de carlton... os passos sempre arrastados, tão arrastados como o fim da tarde... e toda vez que ela conseguia os avulsos de cereja, a caixa já estava aberta... e se ela pedisse e não houvesse caixa aberta, ainda que muitas se acumulassem numa fileira à direita dele, a resposta era "nô them"... os passos se arrastavam, iam-se os dias...

Como o imprevisto acontece, ela mudou de vias. Mudou de rua e até de passos...e o dedo de unha familiarmente amarela virou lembrança, pó de casa fechada... virou saudade...virou esquecimento... desvirou de significado...

Um dia ela voltou pra rever o que considera ser seus pertencimentos...bateu o olhar na banca.O dia não era ruim, mas apesar da euforia havia no seu peito um vazio...Clarice andava lhe sussurrando:"o que é que a gente faz, depois de ser feliz?", uma inquietude... e ela se sentia peixe fora d'água dentro do seu aquário... os dias lá continuaram sem ela, a rotina continuou sem ela, ela parecia deslocada do que era e do que vivia...uma maré de inquietude, uma certeira sensação de estar à deriva...bateu o olhar na banca, foi comprar um cigarro.

Lá, de cabeça baixa estava o chinês...
"Um cigarro de cereja avulso por favor"
"Ele abre a boca, suspende as palavras e com um sorriso amarelo como seu dedo diz:
"oiiiê, tudho bom?como vai lá?passeando?" e estende a mão com toda uma ternura...
Ela o cumprimenta,ela se sente acolhida, ela o guarda na memória, guarda aquele instante para respirá-lo em terras distantes, sorri e repete: tem de cereja?
Ele ainda atônito... como quando vemos alguém querido do outro lado da rua e torcemos pra que nos vejam...não hesita, e com seu sorriso amarelo estende a mão pra organizada fileira de caixinhas lacradas (que continuam a sua direita), abre puxando uma abinha abre-fácil, e deixa seu dedo amarelo perto da face dela.Lá estavam eles...vinte, arrumados... e os dedos dela tiveram dificuldade em puxar um numa caixa nova, afinal nas caixas abertas sempre havia um espacinho pra rolar o cigarro entre os dedos... houve sorrisos mútuos, um som, uma fagulha, o calor...acenos de tchau e ainda sorrisos...

tudo em frações de instantes...tudo repleto de uma esquisita ternura .E,por um momento, aquele aperto de mão, aquela caixinha novinha aberta a fizeram suspirar e respirar aliviada envolta ao mar que a cerca...um conforto, quase uma permissão pra se sentir finalmente em casa.

binha, que pensou em saber o nome dele.
mas resistiu, ele passaria a ser um pertencimento.
ela anda se convencendo que os pertences são meras ilusões.

Um comentário:

Glauber disse...

Talvez
o pertencimento
seja uma ilusão
apenas para quem o deseja,
para quem quer para si
uma paixão,
e exercer sobre ela
domínio.

Mas talvez seja real,
para quem doa,
para quem se dá,
para quem entrega
uma parte de si
a outro corpo.
E sabe
que seu amor pertence
a outrem,
ainda que ele nunca
seja uma posse,
ainda que ele nunca
possa ser
dominado.